Playlist #45 – Filipe Marques Posted in: Playlist

Kant, Capital, and the prohibition of incest
2020
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O LADO DE DEUS É A SUA INTERROGAÇÃO

Ainda que ele me matasse, nele esperarei ( Job 13:15 )

Do lado oculto de Deus só poderemos especular, como essa figura vaga que entreolhamos do outro lado do espelho aparentemente intacto. A dúvida constitui o seu movimento intrínseco, uma dança metafísica que agita a falibilidade dos nossos puros sentidos. Nesse núcleo duro reside o criado e o incriado, o visível e o invisível, o transcendental e o prosaico, antagonismos subordinados a uma dialéctica impossível de superar.

O lado solar de Deus é o horizonte absoluto que define o seu significado e sentido. Creio que o outro lado de Deus não se transforma num anti-Deus, vingador e flagelador, mas numa forma singular de oferecer ao pensamento os seus limites mais controversos. A história pensou que Deus e o Homem fossem um só, tivessem a mesma origem biológica e ontológica. E, assim, para se complementarem mutuamente, para continuarem a obra um do outro (uma dupla face tragicómica), julgam necessário digladiarem-se num mortal diálogo tão apaziguante quanto angustiante.

Ambos sabem que o triunfo é a lei secreta da natureza e é precisamente nesse complexo nó górdio que o discurso da dialéctica se auto-supera: torna-se outra vez início porque sempre foi fim. E, nas extremidades dessa fronteira imensa, jaz a violência como motor de entendimento diplomático. Quiçá a mesma insídia que (quase) move as fatais intenções de Caim, filho primogénito de Adão e Eva, o sucessor primeiro da humanidade, exercidas sobre o seu irmão Abel, o preferido de Deus.

Provavelmente o mesmo gesto que despoleta a fúria de Rómulo sobre o seu irmão e rival Rémulo pela fundação da Roma eterna. Caim e Abel amam-se e odeiam-se, querem-se e desprezam-se, traem-se a juram a sua irmandade. O punho e a faca sugerem a abertura da ferida, a sua consumação bem como o seu dilema diabólico: quem mata corre o risco de se equiparar aos poderes de Deus (porque capaz de destruir) mas, igualmente, dá à vítima o seu estatuto máximo de mártir, uma glória mítica lembrada em todos os tempos vindouros. O crime elimina e redime, absolve a culpa uma vez que a exorciza e expulsa.

Como num filme de Sokurov, o essencial é o não dito e o invisível. Para mim, a chave do diálogo entre os dois irmãos repousa nesta passagem impressionante, anunciada por Caim: “Tem cuidado com o modo como falas de Deus. É o único Deus que temos. Se o deixas escapar, ele não volta.” Sabemos que o Deus dos homens é uma personagem de magna ficção. Mas sabemos também que o Deus de Deus é um absoluto fundamental às nossas existências, por mais que a incerteza e a dúvida brotem frequentemente da sua condição universal.

Enquanto Deus procura a interrogação, os homens esforçam-se por alcançar um tímido conhecimento de si e do mundo. Esse amor (que mata e é morto) é uma prova de suprema fidelidade. Como a faca resvalando na ferida e a ferida desejando a faca.

Natural de Vila do Conde (1976) Formação na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e na Kunstakademie em Düsseldorf.  O seu trabalho tem sido apresentado em exposições individuais e coletivas em Portugal e no estrangeiro. Desenvolve-se a partir das teorias dos filósofos modernos que originaram a compreensão do novo homem. Antecipar ou intervir, assim ele propõe a entrada no campo do saber e estética. 

Destacam-se as exposições: 

 Remarks on Colors, Wittgenstein, Galeria Cubic, Lisboa (2002);  Das Motiv, Museu Chiado, Coimbra (2005); Museo Archeologico Nazionale, Florença, Itália (2007); A [The] Friend of Volker Nolde, Galeria Graça Brandão (2008); The Straightfoward Tale and The Witness’s View, Paço dos Duques, Guimarães (2010);  Requiem by a Young Painter, Paço dos Duques, Guimarães (2010); Art Now, Apocalypse Later; Museu Centro de Memória, Vila do Conde (2011); God Factor, Mosteiro de Tibães, Braga (2012); From Hermeneutics to The Cause, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Coimbra (2014); Art Stabs Power, Qué se Vayan Todos, Bermondsey Art Project, Londres, Inglaterra (2014); A Carne que os Guindastes Suspendem, Espaço Mira, Porto (2015); Em Tudo quanto é Mundo Dito ou não Dito, DesobeDoc, Porto; Feel it, no Fear. The Flesh Yields and is Numb, Galeria Fernando Santos (2017); Knife and Wound, Centro de Arte Contemporânea, Bragança (2018); The Film and Issues, Colégio das Artes, Coimbra (2019); Disclosedness Space, Galería Nuno Centeno, Porto (2019); Carnations and Velvet – Art and Revolution in Portugal and Czechoslovakia, Praga, República Checa (2019); God, Meaning, Subject, Money and Phallus, Travessa da Ermida, Lisboa (2019); And that´s What I Want to do, Tell you Wonderful Things, Espaço Mira, Porto (2020)

EN

Kant, Capital, and the prohibition of incest
2020
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GOD’S SIDE IS ITS QUESTIONING

Even if he killed me, I will wait on him ( Job 13:15 )

We can only speculate on the hidden side of god, like this vague figure that we look at on the other side of the apparently intact mirror. Doubt constitutes its intrinsic movement, a metaphysical dance that agitates the fallibility of our pure senses. In that hard core resides the created and the uncreated, the visible and the invisible, the transcendental and the prosaic, antagonisms subordinated to a dialectic that is impossible to overcome.


God’s solar side is the absolute horizon that defines its meaning and sense. I believe that the other side of god does not become an anti-god, avenger and scourge, but in a unique way of offering thought to its most controversial limits. History thought that god and man were one, had the same biological and ontological origin. And so, in order to complement each other, to continue each other’s work (a double tragicomic face), they deem it necessary to fight each other in a deadly dialogue that is both appeasing and distressing. Both know that triumph is the secret law of nature and it is precisely in this complex gordian knot that the dialectic discourse overcomes itself: it becomes once again a beginning, because it has always been an end. And, at the end of that immense frontier, violence lies as an engine of diplomatic understanding.

Perhaps the same insidiousness that (almost) moves the fatal intentions of Cain, firstborn son of Adam and eve, the first successor of mankind, exercised over his brother Abel, god’s favorite. Probably the same gesture that triggers Rómulo’s fury over his brother and rival Rémulo for the foundation of eternal Rome. Cain and Abel love and hate each other, want and despise each other, betray themselves and swear to their brotherhood. The fist and the knife suggest the opening of the wound, its consummation as well as its diabolical dilemma: whoever kills is at risk of being equal to the powers of god (because he is capable of destroying), but also gives the victim his maximum status of martyr, a mythical glory remembered in all times to come.

Crime eliminates and redeems, absolves guilt as it exorcises and expels it. As in a Sokurov film, the essential is the unspoken and the invisible. For me, the key to the dialogue between the two brothers lies in this impressive passage, announced by Cain: “be careful how you speak of god. He is the only god we have. If you let him escape, he won’t come back.” We know that the god of men is a character of great fiction. But we also know that the god of god is an absolute fundamental to our
existence, even though uncertainty and doubt often arise from his universal condition. While god seeks to interrogate, men strive to achieve a timid knowledge of themselves and the world. This love (which kills and is killed) is proof of supreme fidelity. Like the knife sliding in the wound and the wound wanting the knife.


Bio
Born in vila do conde (1976). Studied at the school of fine arts, university of Porto and at the Kunstakademie in Düsseldorf. His work, presented in solo and group exhibitions in Portugal and abroad, is develop from theories of modern philosophers which gave rise to the understanding of the new man. Anticipate or intervene, thus he proposes the entry into the field of knowledge and aesthetics.

Main exhibitions include

 Remarks on Colors, Wittgenstein, Galeria Cubic, Lisboa (2002);  Das Motiv, Museu Chiado, Coimbra (2005); Museo Archeologico Nazionale, Florença, Itália (2007); A [The] Friend of Volker Nolde, Galeria Graça Brandão (2008); The Straightfoward Tale and The Witness’s View, Paço dos Duques, Guimarães (2010);  Requiem by a Young Painter, Paço dos Duques, Guimarães (2010); Art Now, Apocalypse Later; Museu Centro de Memória, Vila do Conde (2011); God Factor, Mosteiro de Tibães, Braga (2012); From Hermeneutics to The Cause, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Coimbra (2014); Art Stabs Power, Qué se Vayan Todos, Bermondsey Art Project, Londres, Inglaterra (2014); A Carne que os Guindastes Suspendem, Espaço Mira, Porto (2015); Em Tudo quanto é Mundo Dito ou não Dito, DesobeDoc, Porto; Feel it, no Fear. The Flesh Yields and is Numb, Galeria Fernando Santos (2017); Knife and Wound, Centro de Arte Contemporânea, Bragança (2018); The Film and Issues, Colégio das Artes, Coimbra (2019); Disclosedness Space, Galería Nuno Centeno, Porto (2019); Carnations and Velvet – Art and Revolution in Portugal and Czechoslovakia, Praga, República Checa (2019); God, Meaning, Subject, Money and Phallus, Travessa da Ermida, Lisboa (2019); And that´s What I Want to do, Tell you Wonderful Things, Espaço Mira, Porto (2020)

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